Inês Pimentel

// Fala sobre Família

Conversa com especialista

Inês Pimentel

Breve nota curricular: 

Docente no Instituto Superior Miguel Torga, tem experiência profissional e de investigação na área da Violência Familiar e de Género, Igualdade de Oportunidades, Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, Promoção das Competências Parentais, experiência enquanto formadora e orientadora de profissionais e equipas de intervenção comunitária nestas mesmas áreas e experiência clínica, enquanto psicoterapeuta, no trabalho com crianças, jovens e adultos, casais, famílias, grupos e redes, com problemáticas associadas à saúde mental e relacional.

“Há uma tendência das coisas vivas a se unirem, a estabelecerem vínculos, a viverem umas dentro das outras, a retornarem a arranjos anteriores, a coexistirem enquanto é possível. Este é o caminho do mundo.”

Lewis Thomas

A família está em crise? Certamente que nalgum momento, nalgum contexto já ouvimos esta expressão e importa por isso clarificar conceitos. Sim, se crise for entendida como mudança que acarreta risco e oportunidade, sim a família está em crise porque é uma entidade viva, construída socialmente e por isso em permanente transmutação. Todas as famílias atravessam crises e isso não as destrói mas antes as obriga a abrirem-se à complexidade e ao crescimento. Este é o caminho do mundo, como dizia Lewis Thomas.

Mas então como podemos definir “família”?

 

Qual o critério? Consanguinidade? Base genética comum? Afeto? Partilha de residência? Interdependência emocional e instrumental?

Em 1994, no Ano Internacional da Família, a ONU definia família da seguinte forma:

"O conceito de família não pode ser limitado a laços de sangue, casamento, parceria sexual ou adoção. Qualquer grupo cujas ligações sejam baseadas na confiança, suporte mútuo e um destino comum, deve ser encarado como família. Assim, congregações religiosas, associações de trabalhadores, grupos de suporte, gangs de meninos de rua, redes de organizações governamentais, não governamentais e intergovernamentais, podem ser vistos como família.”

Podemos considerar esta definição demasiado abrangente, mas de facto, abre-nos à complexidade do fenómeno, cada família, cada sistema, cada unidade relacional, é única e define-se por:

Um conjunto de elementos ligados por um conjunto de relações - interdependência

Em contínua relação com o exterior - ecossistema

Que mantém o seu equilíbrio ao longo de um processo de desenvolvimento (estádios) - Tempo

Identidade comum – sentido de pertença

Autonomia e auto-organização

Finalidade comum – suporte mútuo, destino comum

Como sistema humano, vivo, é aberto ao exterior, permeável, estabelece trocas, é complexo (o todo é mais do que a soma das partes); é imprevisível; e rege-se pelos princípios da recursividade, retroacção ou circularidade (como as trocas são permanentes não é fácil estabelecer causas e efeitos, as dinâmicas são permanentes e simultâneas).

Todas as famílias têm uma estrutura e um modo de funcionamento próprios, coerente com a sua identidade, no entanto, todas partilham de 2 funções fundamentais:

 

Função Interna

cuidar, proteger, vincular, conferir pertença e identidade

 

Função Externa

socializar, autonomizar, preparar para a vida

Na verdade, quando o sistema de promoção e protecção intervém junto de uma família “disfuncional” será por de alguma forma não estar a conseguir naquele momento cumprir uma ou ambas das suas funções.

Segundo Minuchin (1985, 1988), a família é um sistema complexo que exige organização, possui crenças, valores e práticas que se adaptam às mudanças sociais para garantir a sobrevivência de seus membros e da instituição como um todo. À medida que a sociedade evolui, o sistema familiar também se altera, e todos os seus membros podem ser afetados por pressões internas e externas. Como resultado, ela deve mudar para garantir a continuidade e o crescimento psicossocial de seus membros.

A família é o habitat primordial onde aprendemos as habilidades básicas de interação e afeto, como por exemplo: comunicação, relações interpessoais, linguagem, contactos corporais, parentesco, amor e sexualidade. A família é vista como um sistema de uma perspetiva sistémica, ou seja, "um conjunto de elementos ligados por um conjunto de relações, em contínua relação com o exterior e mantendo o seu equilíbrio ao longo de um processo de desenvolvimento, percorrido através de estádios de evolução diversificados" (Sampaio, 2000) & Gameiro, 1985, páginas 11-12).

A família desempenha um papel crucial no desenvolvimento dos indivíduos, sendo o contexto proximal em que este ocorre, não só na educação dos mais novos, como no enquadramento dos mais velhos. É um elemento essencial na “produção” e “reprodução social”.

De facto, a organização familiar parece ser transversal a todos os tempos e culturas, parece ser o arranjo humano que serve o propósito da sobrevivência e da garantia de manutenção da espécie e do seu legado histórico e cultural. Quando nascemos já somos parte de uma família, inevitavelmente, somos filhos de…, temos um nome que nos é dado por outros e precisamos do vínculo para sobrevivermos e aprendermos. Somos o animal mais dependente à nascença e durante mais tempo… pelo que é absolutamente fundamental um meio relacional e emocional suficientemente nutritivo para o nosso desenvolvimento.

Família Tradicional

Se recuarmos aos tempos mais ancestrais não é difícil imaginar que a família tradicional, muitas vezes próxima do conceito de “clã” servia o propósito da protecção mútua e da garantia da socialização. A família tradicional regida pela norma vigente do patriarcado, era uma construção social que protegia a propriedade. Os casamentos visavam a garantia da transmissão do património, os filhos eram considerados força laboral. A ideia de família ou casa de família pressupõe uma aliança. A família definia-se então como um conjunto de pessoas ligadas entre si pelo matrimónio e filiação e também pela sucessão de indivíduos descendentes uns dos outros, uma base genética, uma linhagem, uma raça, uma dinastia, uma casa (a herança genética e o nome de família). A célula familiar apoiava-se numa ordem do mundo submetida à autoridade patriarcal.

 

Família moderna

A família “moderna”, nuclear de pai, mãe e filhos a viver isoladamente numa célula habitacional, é um produto da revolução industrial. Com a industrialização e o avançar da ciência e da tecnologia, a transição do campo para as cidades trouxe profundas mudanças na organização familiar. A família alargada passou a viver em núcleos mais pequenos (por vezes no mesmo prédio viviam diferentes núcleos pertencentes a diferentes famílias) e instalou-se a ideia de família nuclear, tal como hoje a entendemos. As crianças passaram a ter outro lugar na família, passaram a ser sujeitos, entendidos na especificidade do seu desenvolvimento, com necessidades afectivas e emocionais. Com o desenvolvimento das ciências sociais o lugar da mãe, da vinculação ganhou preponderância; e a figura da paternidade ética ganhou protagonismo. O direito ao divórcio, progressivamente difundido em toda a Europa, trouxe uma nova mudança na compreensão das relações familiares. A ideia de que todas as crianças têm direito a uma família, um pai e uma mãe, trouxe mudanças sociais e jurídicas na conceção de famílias adotivas e de acolhimento. Em 1935 aboliu-se o castigo corporal na Europa.

A família moderna, fundada no amor romântico, sanciona através do matrimónio a reciprocidade de sentimentos e desejos; também valoriza a divisão do trabalho entre os cônjuges, faz dos filhos sujeitos cuja educação está ao cargo da nação. A atribuição da autoridade é objecto da divisão entre estado e pais por um lado, e entre pais e mães por outro.

 

Família contemporânea

A partir da década de 60 vai surgindo a família contemporânea ou pós-moderna que une por um período de extensão relativa 2 indivíduos em busca de relações íntimas e de desenvolvimento psicoafectivo. A atribuição de autoridade é posta em causa (predomínio da horizontalidade na distribuição de poder), em paralelo com o aumento dos divórcios, separações e recomposições. A família contemporânea, horizontal e em redes continua a assegurar a reprodução das gerações. O casamento, em crescente declínio, converteu-se num modo de conjugalidade afectiva na qual 2 pessoas – que às vezes decidem não ter filhos – se protegem do mundo exterior e ganham autonomia das suas famílias de origem. É uma decisão pessoal, a maior parte das vezes precedido de um período de união livre ou experiências múltiplas de vida em comum ou solitária. Concebidos cada vez com maior frequência à margem do casamento, um em cada 3 filhos, está presente no casamento dos seus pais, unidos não mais para toda a vida, mas em mais de 2/3 dos casos, por um período aleatório que terminará com um divórcio – consentido, passional ou conflituoso – e numa situação temporária de monoparentalidade (a maior parte das vezes no feminino).

A par de todas estas mudanças observadas será importante reconhecer que a família continua a ser um valor seguro. Os homens, mulheres, crianças de todas as idades, todas as orientações sexuais e todas as condições amam-na, sonham-na e desejam-na, por isso gostaria de terminar com estes excertos do livro “Normal Family Processes: Growing diversity and complexity” da Froma Walsh:

“A reelaboração da família atual deve ser celebrada como uma transformação positiva nos padrões e nas relações afetivas, rumo a vivências mais plurais e democráticas”

“A família normal não pode mais ser vista como uma entidade monolítica e estereotipada. A norma da família nuclear moderna tornou-se a multiplicidade de arranjos familiares. Todos exigem uma atenção teórica e terapêutica cuidada. O desafio agora é criar políticas sociais e económicas, bem como abordagens clínicas para dar suporte às novas realidades das famílias”

                                                           Froma Walsh, 1993, p.24

As Aldeias de Crianças SOS são a maior organização do mundo a apoiar crianças e jovens em perigo ou em risco de perder o cuidado parental.
 

Acredite num mundo onde todas as crianças crescem em amor e segurança. 

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