Acompanhamos, uns surpresos e desprevenidos, outros apreensivos e pessimistas e outros ainda curiosos à expansão e fortalecimento da inteligência artificial (IA) e à forma como esta “pirateou o sistema operacional da civilização humana” (Yuval Noah Harari, 2023).
Parece-nos que, atualmente, a existência de uma inteligência não humana problematiza todo o entendimento clássico sobre o que seriam as condições suficientemente boas de desenvolvimento e amadurecimento de cada ser humano e de cada criança.
Simplesmente as condições ambientais para o desenvolvimento humano já mudaram quando integrado no seu desenvolvimento estão questões como “pode uma inteligência não humana se tornar melhor do que o ser humano médio a contar histórias, compor melodias, desenhar imagens e escrever leis e escrituras”? (Yuval Noah Harari, 12.05.2023 cit. Jornal de O Expresso”)
Pensamos também que a experiência do brincar e do “criar mundos” está a mudar porque com a IA introduz-se uma alteração profunda da experiência física, da experiência somática afeta e essencial ao desenvolvimento da Unidade do Ser. Com a IA cada ser humano é remetido para um lugar passivo com predomínio do mental e em detrimento da ação criativa.
Como assegurar aquilo que, na perspetiva do Winnicott, seriam os garantes da saúde e do desenvolvimento de seres humanos vivos e maduros quando, com a IA, parece-nos estarem comprometidos não só os princípios da manutenção de um ambiente suficientemente bom onde cada ser humano teria a possibilidade de viver, a seu tempo, a sua subjetividade, construir com a sua omnipotência, mas também lidar com a sua capacidade de criar e de brincar e manejar a sua agressividade para bem da sua capacidade de concernimento, noção do Outro e existência de sentimento de culpa?
A IA parece promover um ambiente onde cada ser é chamado a um processo de anulação da criação própria, anulação do labor e da ação, anulação da aceitação da limitação, da complexidade e até do erro. Fixa o ser humano numa omnipotência onde a introdução gradual da falha é cada vez menor e, portanto, cada vez menor o acesso ao estado do Eu Sou e, ainda mais preocupante, o acesso ao Eu Unitário psicossomático.
Como preservar o caminho necessário da vivência gradual da passagem da subjetividade para a realidade objetiva quando a IA apresenta, de imediato, uma verdade objetiva organizada, linear sem mutualidade e reciprocidade?
Sabemos que, como em todos os processos de mudança de paradigma, o recuo e o retorno ao conhecimento anterior são impossíveis. Não é e não será possível anular a existência e presença da IA nas nossas vidas.
Torna-se então imperioso pensar como manter as condições básicas ambientais para o desenvolvimento de cada ser humano com o surgimento da IA, mas também e sobretudo, se será possível colocar a IA ao serviço das dificuldades de desenvolvimento e crescimento de seres humanos, como por exemplo, as crianças em desenvolvimento em acolhimento residencial?